sexta-feira, 25 de março de 2011

Lilith e o riso das crianças


Alan Unterman conta que “nas vésperas de Shabat e da lua nova, quando uma criança sorri é porque Lilith está brincando com ela. Para livra-la de qualquer mal, deve-se bater de leve três vezes em seu nariz pronunciando uma fórmula de proteção contra Lilith”. A palavra hebraica para “rir” ou “brincar”, t’sahak, também significa “acariciar”. O riso das crianças pode ser provocado por alguma espécie de folguedo sexual. Algo que não chega a ser tão agressivo quanto um coito, mas que se enquadra nos padrões infanto-juvenis dos primeiros passos para a descoberta da sexualidade. O que Abimeleque viu pela janela foi bastante para alertá-lo de que Rebeca era esposa de Isaac, e não sua irmã: “Eis que Isaac estava brincando com a esposa, Rebeca” (Gen. 26:8). A Vulgata acrescenta quatro palavras ao texto Massoreta no versículo onde Sara notou que Ismael estava brincando (t’sahak) “com seu filho Isaac”. De acordo com Jonathan Kirsch, nesta instância t’sahak pode se aplicar a um tipo de abuso infantil, pois Sara toma providencias urgentes quando vê que “Ismael está tomando com o seu irmão menor uma liberdade que ela considera chocante demais para tolerar”.Tal apelo remete ao mesmo dilema levantado por Má Lana Jalaluddín Rumi (1207-1273):
Uma criança não sabe nada da natureza da relação sexual,Salvo aquilo que lhe dizes: que esta é como confeitos.Entretanto, até que ponto o prazer da relação sexualParece-se realmente com o que se obtém comendo doces?Não obstante, a ficção produz uma relaçãoEntre tu, com teu perfeito conhecimento, e a criança,De modo que a criança conhece o assunto por meio de uma metáfora,Embora não conheça sua essência ou natureza real.
Mas na maioria das vezes Lilith não precisa ter muito trabalho para perverter as almas infantis. Como numa árvore doente, os frutos da massa pecadora do mundo já nascem crivados de pontos podres. Graças a um sentido mágico, o motivo que leva um casal a manter relações sexuais pode influir no futuro da educação e fé da descendência (Cf. Zohar chadash 12a; Igeret ha Qodesh; etc.). Principalmente para os cabalistas e os hassideus, se um casal se santificar durante o ato sexual a recompensa será a geração de filhos verdadeiramente observantes do judaísmo. Mas se, pelo contrário, houver um comportamento sem pudor e desrespeitoso diante das normas, o fruto dessa relação será um filho sem caráter e mau. “Será como um pagão, cuja única finalidade é satisfazer a própria luxúria” Esta prole fica sujeita a influência perniciosa de Lilith, que vem brincar com as crianças e carregar suas almas após a morte:
Ela sai pelo mundo e procura suas crianças. Ela vê os filhos do homem, se junta a eles – para matá-los e ser absorvida nas almas da prole dos filhos do homem – e parte com aquela criança. Mas três espíritos santos chegam lá e voam à sua frente. Tiram-na aquela criança e colocam-na diante do Santo, bendito seja, e ali ela [a criança] estuda diante Dele. Por isto a Tora adverte: “Sede santos” (Lev. 19:2). Se um homem é santo, ele não é prejudicado por ela, porque o Santíssimo, bendito seja, envia aqueles três anjos santos que nós mencionamos. Eles guardam aquela criança e ela não pode prejudicá-la. Mas se um homem não é santo, e arrasta um espírito do lado impuro, então ela vem, faz brincadeiras com aquela criança e, quando ela a mata, penetra aquela alma [que parte da criança] e nunca a abandona (Zohar 3:76b-77a).
Um apócrifo gnóstico cristão enuncia que os filhos que uma mulher dá à luz se parecem àquele que a ama. “Se é o seu marido, parecem-se ao marido; se um adúltero se parece ao adúltero. Sucede também com freqüência que quando uma mulher se deita com seu marido por necessidade — enquanto seu coração está ao lado do adúltero com quem mantém relações — dá à luz o que tem de dar à luz com a aparência do amante” (Evangelho Segundo Felipe – 112). Este conceito foi bastante difundido na Idade Média. É o mesmo princípio exposto no Zohar, quando o rabi Shimon bar Yochai aconselha seus discípulos a evitar, conscientemente, de encarar uma mulher: “Se vocês não procederem assim, poderá acontecer-lhes de ficarem pensando nela quando estiverem nos momentos de intimidade com a esposa de vocês e assim o demônio terá parte na concepção”. As crianças geradas desta forma precisam morrer para que seja cumprida a justiça divina:
Mas, Senhor do mundo, quando uma criança tem apenas um dia de vida, será julgada? Essas são as lágrimas dos oprimidos, que não encontram consolo. Há muitos tipos diferentes entre eles, mas todos derramam lágrimas. Por exemplo, há a criança nascida do adultério. Logo que ela vem ao mundo é separada da comunidade do povo sagrado, se lamenta e derrama lágrimas perante o Senhor e reclama: Senhor do mundo, se meus pais pecaram, que culpa tenho eu? Tentei praticar apenas o bem perante Vós. Mas o maior sofrimento de todos é o desses “oprimidos” que são apenas bebês que foram afastados dos seios de suas mães... Mas por que é preciso que esses pobres pequeninos, que não têm culpa ou pecado, morram? Onde está agora o julgamento verdadeiro e justo do Senhor do mundo? Se eles devem morrer por causa dos pecados de seus pais, certamente “não encontrarão consolo”. No entanto, na verdade as lágrimas desses oprimidos intercedem pelos vivos e os protegem, e devido à sua inocência e ao seu poder de mediação é preparado um lugar para eles que nem mesmo os inteiramente justos podem conquistar ou ocupar; porque na verdade Deus os ama de um modo especial e particular. Deus se une a eles e prepara-lhes um lugar superior, muito perto Dele. É com respeito a esses pequeninos que está escrito: “Pela boca das crianças e bebês tu o firmaste, qual fortaleza” (Salmo 8:3). (Zohar 11, 113b).
Quando, por alguma reviravolta do destino, o condenado sobrevive, o demônio vem reclamar sua prole a cada lua nova. Essa não terá um lugar especial reservado ao lado do trono de Deus. Antes, se transformará em mais um lunático (talvez até um licantropo):
Às vezes acontece de Naamah avançar no mundo para fazer-se ardente para os filhos do homem, e um homem se descobre numa conexão de luxúria com ela. Ele desperta de seu sono, agarra sua esposa e deita-se com ela. Este desejo vem daquela luxúria que ele teve em seu sonho. Então a criança que ela gera vem do lado de Naamah, porque o homem foi movido até ela por sua luxúria. E quando Lilith vem e vê aquela criança, ela entende o que aconteceu. Ela se junta a ele e educa-o como todos os outros filhos de Naamah. Ela fica com ele muitas vezes, mas não o mata. Este é o homem que se torna marcado em toda Lua Nova, porque ela nunca desiste dele. Porque mês após mês, quando a lua torna-se nova no mundo, Lilith vem e visita todos aqueles que ela educou, e brinca com eles, e por isso aquela pessoa é marcada naquele tempo (Zohar 3:76b-77a).
As duas esposas principais de Samael criaram um complicado esquema onde primeiro Nahemah provoca sonhos eróticos em homens casados. Suas vítimas acordam excitadas e solicitam suas esposas. O produto desta união é um “filho de Nahemah” porque seu pai estava pensando nela durante o momento da concepção. Logo, de acordo com Daniel Lifschitz, “qualquer casal deveria evitar o início e o fim da noite e qualquer outro momento em que as pessoas, ainda acordadas ficam de ouvidos ligados. Tais circunstâncias poderiam suscitar pensamentos lascivos nas pessoas e concederiam ao demônio o poder de ter parte em cada filho eventualmente concebido, transformando-o quase num bastardo”.Como, tradicionalmente, Nahemah não cria filhos, sua prole fica entregue aos cuidados de sua irmã e rival. Lilith vem brincar com a cria dos maus e educa suas crianças para seguirem a inclinação esquerda. Ou seja, as desvia do ensino da Tora para os prazeres da vida. Então, ela espera como alguém que plantou uma videira, regou e cuidou até que possa colher as uvas. Cedo ou tarde seus caminhos levam para a morte, que libera as almas para serem penetradas. Quem quiser livrar sua descendência destes espíritos deve recorrer à oração: “Antes de manter relações sexuais é preciso orar ao Senhor para ter filhos que sejam bons, santos em sua alma, prontos para acolher, sem zombaria, até os menores preceitos do Judaísmo”. Os três anjos que protegem os filhos dos santos são chamados em diversas fontes e amuletos pelos nomes Sanvi, Sansavi e Semengalef.

Kinder Benimerines e o roubo de crianças:
Em 1891 o ex-presidente da Sociedade de Cultura Cigana, Charles Godfrey, atestou que “os ciganos sempre foram vistos como feiticeiros e ladrões de crianças, e é fato curioso que Lilith, a mãe de toda feitiçaria, tenha feito o mesmo e, atualmente, os ciganos eslavos possuam sortilégios contra esse espírito”. O roubo de recém-nascidos “é uma característica muito antiga do demônio feminino ou feiticeira, ou strega, e é encontrada atualmente entre os judeus, que acreditam nas Benemmerinnenou bruxas que assombram as mulheres durante o parto, assim como fazia Lilith. “Os judeus baniram essa primeira esposa de Adão, escrevendo nas paredes ‘Adam chava chuz Lilith’ [‘Afaste-se daqui, Lilith!’] (Anthropodemus Plutonicus, escrito por John Praetorius, 1666)”.Não creio que as fontes das lendas de Lilith se limitem à depressão pós-parto e doenças infantis. Certas histórias do desaparecimento de virgens levadas por bruxas não poderiam, a partir de certa época, ser alimentadas pelo medo de possíveis raptos realizados por cafetões ou alcoviteiras?  Talvez não seja impossível que eventualmente alguma feiticeira se envolvesse neste meio, pois o comércio de remédios, mandrágora,afrodisíacos e abortivos pode ter feito com que compartilhassem fregueses com bordéis e prostitutas. Como a vida de uma curandeira nunca foi fácil, a interação cultural poderia despertar o interesse de quem precisa vender pelos demais objetos de desejo daqueles que desejavam comprar. Em suma, seria ingenuidade negar o potencial lucrativo da compra ou roubo de varões recém-nascidos, incircuncisos, destinados à venda a terceiros interessados na adoção – coisa que as parteiras teriam maior facilidade em obter – ou meninas a partir da faixa etária dos dez anos, para o matrimônio ou prostituição.É fato que, há tempos, não faltavam compradores em potencial dentre os povos germânicos. Segundo Lujo Bassermann, “no ano de 973 d.C., Ibraim Ibne Jacó, judeu espanhol convertido ao islamismo, percorreu a Boêmia, a Alemanha Central e as terras costeiras do Mar Báltico. Apesar de não o reconhecer expressamente (ao menos na parte de seu relatório que foi conservada), é possível deduzir por diversos indícios contidos no mesmo, que ele tivesse tentado comerciar prisioneiros louros das tribos guerreiras eslavas do Báltico”. Sem dúvida não foi um caso único. “Os germânicos do norte vendiam mulheres aos comerciantes árabes, especialmente as que não fossem mais consideradas virgens. Os Viquingues, ainda pagãos naquela época, e os árabes, seus parceiros de comércio, conjuntamente – e de forma lucrativa – resolveram o problema das mulheres devassas”.Posteriormente, na Idade Média “os judeus e os ciganos contribuíram com os requintes do Oriente”. Em 1645, Jean Le Laboureur escreveu que entre os húngaros daquele tempo “quando um camponês vendia aos turcos crianças cristãs, costuravam-no inteiramente nu dentro de um cavalo morto, do qual haviam tirado as entranhas, tendo somente a cabeça do lado de fora, sob a cauda do cavalo; e o animal e o vivo apodreciam juntos”. Ainda assim, no século XVIII, um famoso bordel de Berlim foi, por algum motivo, batizado com o sugestivo nome O Judeu Guedelhudo.Vemos, portanto, que havia um motivo plausível para a compra ou roubo de crianças e jovens na Alemanha. Muitas deviam morrer por doenças, fome, maus tratos, repressão e todo tipo de má sorte que persegue um marginalizado prostituído. Mas a mitologia pretende mais. Um texto cabalístico apresenta uma verdadeira sociedade de bruxas, organizada e hieraquizada, que ofereceria sacrifícios infantis à primeira mulher: “Esta Lilith tem quarenta tempos malignos, nomes malignos e facções malignas. E todas são ordenadas para matar as crianças – possamo-nos ser salvos! – especialmente através das bruxas que são chamadas Kinder Benimmerins na linguagem de Ashkenaz [Alemão]” (Bacharach, ’Emeq haMelekh, 140b). 

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